quarta-feira, 30 de setembro de 2009

De olhos bem abertos

Existem diversas formas de cegueira. A primeira e mais óbvia associação é a deste país perante seus representantes eleitos. Quando um senador que já foi presidente censura jornais e acusa a imprensa de "inimiga das instituições", é praticamente impossível permanecer às cegas. Ainda assim, a analogia política parece simples, fácil demais.
Ensaio sobre a cegueira, do escritor português José Saramago (Nobel de Literatura), é um livro difícil de digerir. Não apenas pelo estilo e pontuação peculiares, mas porque enxerga as piores doenças humanas dentro do que chamamos de civilização. Sintomas que não são físicos, mas que deixam cicatrizes profundas nos, muitas vezes também míopes, leitores.
A adaptação do romance para o cinema, Blindness (filme que no Brasil manteve o nome original, Ensaio sobre a cegueira) foi dirigida por Fernando Meirelles (de Cidade de Deus e O jardineiro fiel), produzida pela Miramax Films e lançada em 2008. Demorou pra sair do papel, já que Saramago é conhecido por vetar adaptações cinematográficas de suas obras. Uma produção de três países (Canadá, Brasil e Japão), a história foi para as telas em inglês, com Mark Ruffalo, Julianne Moore, Danny Glover, Gael García Bernal e Alice Braga no elenco.
O primeiro homem a ficar cego está no trânsito. Sinal verde, ele não é capaz de seguir adiante. A sociedade inteira, posteriormente, também acaba parando. De início, a cegueira é vista como mais uma epidemia a ser erradicada. A decisão de colocar os infectados em quarentena parte de cima. Enquanto se busca por uma cura, uma resposta para o mistério, as próprias autoridades começam a perder a visão. Apesar disso, a cidade continua vivendo, empurrando a “doença branca” para baixo do tapete.
É assim que o médico e sua mulher vão parar no isolamento. São os primeiros a chegar. Ele, verdadeiramente afetado pela cegueira. Ela, acompanhando o marido e escondendo o fato de ser a única que ainda consegue ver, enquanto mais e mais pessoas são encaminhadas à quarentena. E a mulher do médico continua vendo quando a doença se transforma em desculpa para a selvageria. O hospital se torna uma prisão, o número de doentes aumenta, os cuidados externos diminuem. A comida torna-se escassa, o lixo e a sujeira se multiplicam, a violência e a corrupção criam novas hierarquias, baseadas em interesses pessoais, lideradas por cegos armados.
Pode-se pensar em humilhação, injustiça, desonestidade, vingança, dor, medo, traição. Pode-se pensar em caos. A doença é imune a regras. Mas quem realmente vê tudo isso? Nem mesmo quem sente na pele. Qualquer tentativa de fuga de uma quarentena social vai sempre de encontro à cidade que restou, abandonada, deixada de lado como a própria humanidade dos personagens.
O Ensaio sobre a cegueira filmado não se distancia do texto lido, mas abre os olhos para a miséria humana que na literatura fica apenas a cargo da imaginação. O branco característico da doença permeia as imagens, muitas vezes fora de foco, muitas vezes claras demais, daquilo que o espectador preferiria não ver. Está no prefácio do livro: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. Filme, livro, ensaio, são formas diferentes de retratar uma mesma verdade: o pior cego não é aquele que não quer ver, mas o que também se finge de mudo.

3 comentários:

  1. simplismete demais...
    a partir de hoje vou bater cartão no seu blog.

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  2. Olá, Kátia. Dizer que a miséria fica "apenas a cargo da imaginação" é atribuir ao cinema uma função que não lhe cabe. O cinema não deve servir para "traduzir" obras literárias, nem torna-las mais fáceis. Ao contrário de sua observação, não entendo que o filme avance em relação ao livro, até porque acho que alguma comparação só deve ser feita em um primeiro plano, como apresentação. Acho que o Fernando Meirelles pecou um pouco por medo, mas um pouco também por deixar a entender que a obra literária já era completa e que adapta-la significava ser o mais fiel possível. Não sei se já leu algo sobre o poeta Paul Valery, mas segundo o próprio uma obra literária só tem valor quando o leitor participa da mesma, contribuindo com sua bagagem emocional, cultural e, claro, com sua imaginação. Talvez a adaptação cinematográfica e sua análise pequem do mesmo pecado: ver demais.
    Parabéns pelo blog !

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  3. André, essa é uma análise interessante... Pra você ver que, enquanto se falar a respeito, há sempre a possibilidade de um novo ponto de vista :-)

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