sexta-feira, 30 de outubro de 2009

A medida do eterno

Temos nosso próprio tempo, determinado por cada experiência vivida. Felizes, sentimos que ele teima em passar voando. Na ansiedade, estende-se indefinidamente. Com a proximidade do dia que homenageia os mortos (aqueles cujo tempo já se esgotou por aqui) nós desejamos – com ingenuidade – o exato oposto daquilo que possuímos. Fonte da Vida / The Fountain é um filme que explora esse desejo, o mais profundo do ser humano e também o mais impossível: vencer o poder das horas.
Com a direção de Darren Aronofsky, o filme foi produzido pela Warner Bros. Pictures e lançado em 2006. De uma forma anticonvencional, propositalmente desconstruindo a linearidade do tempo, a narrativa percorre um período de mais de mil anos para contar três histórias paralelas, todas elas envolvendo o mesmo casal, interpretado por Hugh Jackman e Rachel Weisz.
No tempo presente, Tom e Izzi enfrentam um problema: ela está morrendo. Ele, médico, busca desesperadamente a cura para o tumor dela. Corre contra o relógio, perdendo minutos preciosos da companhia de seu amor, para no fim perder também essa luta. Seu oponente é imbatível. Mesmo que Tom não desista, que não aceite a derrota iminente, é tudo em vão. Ainda assim, conseguiria ele viver com a idéia de não ter feito todo o seu possível para salvar Izzi?
Ela, temerosa mas progressivamente resignada, enfrenta outra luta: fazê-lo entender. Nesse ponto entra uma das tramas que ocorrem paralelamente, só que no tempo passado. Izzi escreve e vive uma história em que a rainha da Espanha, vendo seu território ameaçado por reinos vizinhos, envia um conquistador à ainda selvagem América Central em busca da “árvore da vida”, que possibilitaria a salvação espanhola das mãos de seus opressores.
Essa árvore extraordinária é a mesma que acompanha a jornada de um outro personagem, muitos anos depois, num futuro indefinido. Flutuando em uma bolha no espaço rumo a uma estrela que morre aos poucos dentro de uma nebulosa, o misterioso homem revive suas lembranças e sofrimentos, numa jornada de autodescobrimento e iluminação. O viajante busca, através do tempo, um reencontro com sua amada, junto de quem pretende viver eternamente.
O sonho de viver para sempre é tentador. A ideia da morte como uma doença, para a qual supostamente haveria uma cura, é enganosa. A falta de limites, a infinidade de qualquer coisa – mesmo que essa “coisa” seja a vida – vem sempre carregada de perigos. Aronofsky já havia abordado esse assunto anteriormente, com o pesado Requiem para um Sonho / Requiem for a Dream, um filme no qual a busca pelo prazer ilimitado (no caso, das drogas) leva à destruição. A diferença é que em Fonte da Vida ele vai além e opta por construir uma história de amor quase espiritual, analisando a morte com base na fragilidade de nossa existência neste mundo. Uma análise que leva o espectador a entender a necessidade de haver um fim.
Sim, a vida é breve. Ela é imperfeita, cheia de equívocos, de injustiça e de dor. Mas cheia de amor. Esperança. Coisas pelas quais vale a pena viver... ou morrer. Porque o essencial (ainda que difícil, ainda que praticamente inconcebível) é aprender a aceitar. Não a morte, mas a própria vida. Aceitar que as coisas são como tem de ser. Fazer as pazes com isso e abraçar o fato de que a beleza da vida reside justamente na simplicidade de sua finitude.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Labirintos e papéis amarelados

A história do mundo tem caminhos labirínticos. Esta semana, um evento de consequências mundiais faz aniversário. Sem comemorações. No triste outubro de 1922, a Marcha sobre Roma decretou o início de uma era que a humanidade gostaria de esquecer: o império dos regimes totalitários – ou, para deixar de eufemismos, a vergonha representada pelas ditaduras.
A manifestação na Itália marcou a ascensão ao poder do Partido Nacional Fascista, que posteriormente inspiraria a criação, no país vizinho, de um Partido Nacional Socialista – a.k.a. Nazista. Com a Alemanha dominada por Hitler e a Itália por Mussolini, não demorou muito para que os primeiros rebentos do totalitarismo começassem a nascer. Um deles na Espanha, sob o controle do militar fascista Francisco Franco, o qual permaneceria no poder durante quase 40 anos.
O Labirinto do Fauno / El Laberinto del Fauno se passa justamente nesse período negro da política espanhola. Escrito, dirigido e produzido pelo cineasta mexicano Guillermo del Toro, o filme foi lançado em 2006 pela produtora Tequila Gang e premiado com 3 Oscars (Melhor Fotografia, Direção de Arte e Maquiagem).
Corre o ano de 1944 e Ofélia (Ivana Baquero) se muda para uma casa no campo com sua mãe, que está grávida e muito debilitada. O padrasto de Ofélia, um implacável capitão do exército franquista (interpretado por Sergi López), não disfarça seu desprezo pela menina. Em um período logo após a Guerra Civil no país, o capitão não mede esforços – nem violência – para extinguir os últimos resquícios de movimentos rebeldes republicanos, que ainda sonham com a democracia.
Apegando-se ao poder da magia para enfrentar tempos difíceis, Ofélia tem nos livros seus maiores aliados. Tanto é influenciada por eles que acaba se confrontando com personagens apenas imaginados em histórias fantásticas. Levada pelo que acredita ser uma fada, a menina descobre as ruínas de um labirinto onde encontra o Fauno (Doug Jones). A estranha criatura lhe faz uma revelação: embora não se lembre, Ofélia é na verdade a princesa de um Reino Subterrâneo, “onde não há mentira nem dor”. Contudo, para que possa retornar ao reino e rever seu pai, ela deve cumprir três complicadas tarefas antes da lua cheia.
A partir do encontro com o Fauno – ser mitológico que representa o destino e a fatalidade – somos transportados a um universo em que a fantasia se torna cada vez mais real e concreta, pelo menos aos olhos de Ofélia. A história da menina representa a luta pela sobrevivência em um mundo de crueldade e morte. Não apenas para manter vivo o corpo, mas as ideias que o movem. Para preservar o sentimento e principalmente a liberdade, colocada em risco pelo fascismo.
Ainda nos anos 30, praticamente prevendo o controle da Europa pelos regimes antidemocráticos, o filósofo espanhol José Ortega y Gasset já havia alertado para o perigo da perda do pensamento individual através da massificação. Em A rebelião das massas, ele afirmava que o crescimento do poder econômico e político de uma classe média (remediada) levou à criação de uma maioria alienada, que impõe uma cultura de comportamento padronizado e nivelado por baixo. Prato cheio para Estados autoritários, baseados na ilusória salvação do orgulho nacional.
Exemplos disso existem até os dias de hoje, e nem precisamos ir muito longe para encontrá-los. Nossa própria América Latina observa de braços cruzados enquanto o fantasma do autoritarismo volta a nos assombrar. Neste caso, basta um pouquinho de imaginação para ver nosso destino, e infelizmente ele não tem semelhança nenhuma com as aventuras dos contos de fadas.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Vida para ver de fora

Basta ligar a TV. Somos apresentados a Truman Burbank, um homem comum vivendo em uma cidade comum, onde nada de muito extraordinário acontece. Tudo funciona, tudo parece perfeito, só que por trás dessa linda fachada existe algo errado, algo que perturba Truman. Ele não sabe, mas sua vida faz parte de um “reality show”.
Essa é a premissa do filme O Show de Truman / The Truman Show, dirigido por Peter Weir e lançado em 1998 pela Paramount. No papel do protagonista está Jim Carrey, revelando uma face muito diferente da que estamos acostumados a ver. Aqui, a comédia rasgada dá lugar a uma reflexão profunda e interessante sobre o poder da mídia na sociedade de consumo.
A vida de Truman é uma encenação. Desde que nasceu, adotado por uma corporação, seus passos foram captados por milhares de câmeras espalhadas em uma cidade cenográfica onde todos são atores. Sua família, sua esposa, seus amigos, cada um deles trabalhando para manter a estrela do show alheia à sua real condição.
Mas nem a melhor redoma permanece intacta de rachaduras. Pouco a pouco, Truman começa a perceber detalhes estranhos à sua volta. Um holofote que cai do céu, uma transmissão de rádio que narra o que acontece na rua, propagandas que entram em cena descaradamente no seu dia-a-dia. Truman desconfia. E começa a se perguntar sobre o que está lá fora, desejar além.
Em O mundo como vontade e representação, o filósofo Arthur Schopenhauer já havia abordado esse problema, com a conclusão de que viver é sofrer. Ou seja, o homem está fadado à insatisfação. Para Truman, prisioneiro da própria ignorância, a angústia é buscar seu propósito no universo. Eventualmente, a história toca também em outro conflito antigo da humanidade: a vida não se resume ao nosso próprio umbigo. "Às vezes parece que o mundo inteiro gira em torno de mim", diz Truman. “É bastante mundo para um homem só”. Neste caso, nem tanto.
O que ele busca é apenas uma identificação com algo além de si mesmo. Na ilusão da vida tipo “comercial de margarina”, nada é autêntico. Tudo é produto, tudo é feito para ser vendido, não sentido ou pensado. Christof, o criador do show no filme (interpretado por Ed Harris), considera-se um pai para Truman, mas até o afeto que tenta demonstrar é uma mera fantasia de sinceridade: ele gosta de sua “criatura” porque ela faz sucesso. Como o maestro de uma orquestra, rege cada movimento para que aquilo que se vê na tela volte refletido em audiência, em lucro. Brinca de Deus, com o poder onipotente de interferir no destino do “filho” - ou mesmo destruí-lo. Não há limites, e a moral do “entretenimento acima de tudo” é bastante duvidosa.
Participando desse processo está o espectador padrão. Cansado de pirotecnias, ele se vê entediado com atores fingindo emoções falsas. Ainda que o mundo de Truman seja coreografado, não há falsidade na pessoa que o protagoniza. Não há falas decoradas nem reações previsíveis. O resultado não é sempre genial, mas é genuíno.
De suas casas, os telespectadores acompanham O Show de Truman como se o conhecessem intimamente. Torcem para que o personagem reencontre um amor do passado, perguntam-se o que irá acontecer se ele descobrir que seu mundo é uma farsa, riem e choram com as alegrias e dores desse ator que não escolheu fazer parte do espetáculo, privado de qualquer resquício do seu livre arbítrio. Quem assiste ao programa imagina que se importa com Truman, mas não nota o fato de que ele é um simples fantoche manipulado por uma equipe de produção. E isso, meus caros, chama-se alienação.
Em uma cultura obcecada por realidades cuidadosamente construídas, as pessoas preferem se recolher em suas casas para observar como “voyeurs” a vida social de outras pessoas. Elas projetam seus desejos nas imagens que vêem na tela. Através dos personagens da ficção, encontram um meio de vivenciar novas aventuras. Então, esperam sempre por algo extraordinário – o próximo close, as frases marcantes, os efeitos especiais. E nunca é suficiente. Ainda que parecido com "a coisa em si", o que está ali não passa de uma realidade maquiada, de mentirinha.
Assim, podemos desligar a TV ou sair do cinema aliviados - nada nos aconteceu de fato. Deixamos de viver para mergulhar em sonhos abstratos, e perdemos o que há de melhor do lado de cá da tela: a minha vida, a sua vida - que é pra valer e acontece agora. Também tem começo, meio e fim. Só não dá pra apertar a tecla “rewind” ou refilmar o roteiro, por menos empolgante que seja a história.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

A arte de mover montanhas

Deus é brasileiro, dizem. A escolha do Rio de Janeiro como sede das Olimpíadas de 2016 está aí pra reforçar essa tese. A fé sempre foi nosso forte, já que nos outros departamentos – o que inclui educação, saúde, segurança, trabalho, qualidade de vida e principalmente honestidade – a credibilidade do país se enfraquece a cada dia.
Enquanto se aproxima o feriado que celebra a padroeira do Brasil, ela parece um assunto pertinente. Não a religião em si, nem suas variações de culto, mas a própria Nossa Senhora. Aparecida de muitos outros nomes, imagem da mãe complacente que se tornou protagonista de algumas de nossas melhores histórias.
No Auto da Compadecida, essa complacência pelo jeitinho malandro tão brasileiro aparece em toda a sua glória. Originalmente uma peça de teatro escrita por Ariano Suassuna, a trama é construída com bom humor e uma expressiva mistura de elementos, tanto religiosos quanto do imaginário popular nordestino. Em termos gerais, trata-se de uma comédia que acha sua graça no poder de acreditar. Pulando do universo teatral para o audiovisual, O Auto da Compadecida fez sua primeira parada na televisão, como minissérie da rede Globo. Sob a inventiva direção de Guel Arraes, a versão reduzida da série virou filme e estreou nos cinemas em 2000.
O auto começa no sertão da Paraíba, acompanhando dois “picaretas”: João Grilo (personagem de Matheus Nachtergaele) e Chicó (Selton Mello). Eles anunciam A Paixão de Cristo, que além de ser "o filme mais arretado do mundo" é também uma das muitas estratégias da dupla para sobreviver. Entre confusões com os padres da igreja e o major da cidade, João Grilo e Chicó conquistam, se não a riqueza que gostariam, pelo menos a simpatia de quem assiste suas peripécias. Seja pela esperteza, criatividade, ou pela simplicidade com que encaram a dureza da vida, os dois sabem muito bem até onde vão suas virtudes – e a falta delas.
Pecados mal iniciados, como os planos de João Grilo de casar Chicó com a cobiçada Rosinha, apoderando-se de uma porca de barro cheia de dinheiro, não são levados a cabo porque o cangaceiro Severino entra desavisado nessa equação. Alguns tiros e várias mortes depois, os personagens se encontram no Juízo Final, momento no qual pedem absolvição divina com a intercessão de Nossa Senhora em pessoa (Fernanda Montenegro, em uma bela aparição – com o perdão do trocadilho).
O apelo à Compadecida levanta uma verdade que Suassuna coloca na “moral” da peça: recorre-se à misericórdia porque, se fôssemos julgados pela justiça, toda a nação seria condenada. Mas é uma questão no mínimo delicada, porque o mesmo povo que cai em pecado também sofre, desse modo se redimindo – embora não a ponto de as pessoas se tornarem santas.
Exageros e licenças poéticas à parte, a história é o alegre retrato de uma crença generalizada. Em um país onde a razão não salva ninguém, a saída mais inteligente ainda é recorrer à boa e velha fé para resolver tantos problemas. Ainda que, para todos os efeitos, nem mesmo milagres sejam suficientes hoje em dia. Neste caso, remediados estamos: com o Auto da Compadecida, podemos rir de nossos pequenos infernos, esperando por uma redenção que não chega tão cedo.