terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Sonhos, pesadelos e etc.

Enfim, chegamos à semana do Natal. Agora podemos descansar de todos os compromissos - sim, porque as aparentemente inofensivas tarefas de comprar presentes, arrumar enfeites, preparar cardápios especiais, organizar festas ou viajar acabam se tornando quase um trabalho em tempo integral – e começar a aproveitar o que realmente importa. Mas então, o que é o mais importante nesta época do ano?
O estranho mundo de Jack / The nightmare before Christmas (em tradução livre, O pesadelo antes do Natal) conta a história de um personagem bastante peculiar, que talvez nos ajude a responder essa pergunta. Jack Skellington é o “rei das abóboras” em Halloweentown (a cidade do Halloween, o Dia das Bruxas). Basicamente, sua função – e dos demais habitantes desse bizarro lugar – é garantir que, todos os anos, o Dia das Bruxas seja o mais horripilante possível.
O problema é que, após mais um ano de assustadoras aventuras, Jack está cansado dessa rotina. Falta algo em sua vida. É quando, acidentalmente, ele acaba encontrando o caminho para Christmastown (a cidade do Natal), um lugar muito diferente de tudo a que está acostumado. Extasiado com a descoberta, Jack tenta mostrar aos cidadãos de Halloweentown como o Natal é maravilhoso, e vai além: resolve, ele mesmo, fazer o papel do bom velhinho naquele ano. Para tanto, contrata três pestinhas, que se encarregam de sequestrar o verdadeiro Papai Noel.
O que Jack não percebe é que sua visão do Natal difere muito do que as pessoas esperam. Ele se engana ao pensar que a diversão só existe na cidade vizinha, que tudo é melhor na vida dos outros, e mais ainda ao considerar que a resposta está ali ao lado, quando na verdade deveria procurá-la dentro de si mesmo. Também se engana ao acreditar que o espírito do Natal se resume a presentes e que basta colocar a roupa do Papai Noel para magicamente se transformar em alguém que não é.
Lançado em 1993 pela Skellington Productions Inc., O estranho mundo de Jack foi dirigido por Henry Selick, embora carregue todo o estilo visual de Tim Burton, seu idealizador. O filme é um musical e também uma animação, mas a leveza de ambos os gêneros ganha profundidade com a melancolia das criaturas de Burton, que é conhecido por seus personagens excêntricos e pela direção de arte inspirada em elementos góticos, como em Edward Mãos de Tesoura / Edward Scissorhands e no remake de A fantástica fábrica de chocolate / Charlie and the chocolate factory.
Mesmo esquisito e deslocado, Jack é um pouco como todos nós. Na ânsia em deixar tudo pronto e perfeito para concretizar nossas fantasias de boas festas, acabamos esquecendo que, antes das coisas materiais, uma única coisa abstrata deveria definir essa data. Se não somos capazes de encontrar alegria nas pessoas que amamos, independentemente dos presentes e guloseimas, algo está errado em nosso mundo. Isso significa que, enquanto sonhamos com aquilo que não temos, a felicidade que está bem ao nosso alcance vai passando. Quando acordarmos, na manhã de Natal, sobrarão apenas lindos embrulhos em caixas vazias.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Como fazer a coisa certa

Com o ano cada vez mais perto do fim, por mais fatalista que possa parecer, chegamos ao famoso momento de rever o que aconteceu nos últimos trezentos e tantos dias para tentar não repetir os mesmos erros em 2010. É sempre assim: o suposto milagre da virada. Tudo isso para, nem bem janeiro desponta no horizonte, acabarmos abandonando todas as maravilhosas ideias de mudança e voltando aos velhos hábitos. Mas seria esse um caso clássico de “o que vale é a intenção”?
Para ilustrar a questão, analisemos uma pequena história. Na década de 30, na Inglaterra, Briony é uma garota de 13 anos que quer ser escritora. Um belo dia, ela vê sua irmã mais velha, Cecilia, com o filho da empregada, Robin, junto a uma fonte. Levada por sua fértil imaginação, Briony interpreta a cena como um incidente de assédio. Pouco depois, ela acaba lendo uma carta de Robin destinada a Cecilia. Finalmente, a garota presencia outra cena entre os dois na biblioteca, apenas para concluir que o rapaz é de fato um pervertido sexual.
Quando, naquela mesma noite, um crime acontece na propriedade da família de Briony, ela não tem dúvidas sobre o culpado. Robin é acusado e preso, deixando para trás os planos de se formar em medicina e também o amor que acabava de descobrir com Cecilia. Ela é a única a defender a inocência dele, e se afasta de Briony para o resto da vida. Enquanto isso, Robin é enviado para lutar na 2a Guerra Mundial.
Muitos anos depois, já velha, Briony se torna uma escritora bem sucedida, mas sofre de uma doença terminal. Ela acaba de finalizar o livro Atonement (em português, Reparação), no qual reconhece seu comportamento leviano, que destruiu as vidas de tantas pessoas, e tenta reparar os erros cometidos na juventude. No entanto, considerando toda a infelicidade causada, não será tarde demais para isso?
Essa é a trama de Atonement, romance do autor britânico Ian McEwan, que aborda de maneira envolvente as relações familiares, o tempo, o remorso, a culpa. O livro ganhou uma belíssima versão para o cinema em 2007, produzida pela Universal Pictures e sob a direção de Joe Wright, com Keira Knightley e James McAvoy nos papéis de Cecília e Robin. Desejo e Reparação / Atonement foi indicado ao Oscar de Melhor Filme, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Figurino, Cinematografia, Direção de Arte e Atriz Coadjuvante (a jovem Saoirse Ronan), e venceu na categoria de Trilha Sonora Original (pelo impecável trabalho de Dario Marianelli).
A moral da história, se é que existe, fica a cargo do espectador (ou leitor). Mesmo não sendo esse o objetivo de ambas as obras, talvez se possa aproveitar um pouco delas para nossas resoluções de ano novo. A primeira, diz respeito a uma pergunta: de que adianta chorar por aquilo que não se pode mais mudar? A segunda, uma simples conclusão: ao invés de nos esforçarmos para reparar os erros passados, quem sabe seja interessante, antes de cometê-los, avaliar nossas ações no presente. Não significa que acertaremos sempre, mas certamente pode ser um bom começo.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Entre mortos e feridos, perdem-se todos*

A realidade pelo ponto de vista de uma criança tende a parecer, para nós (supostamente adultos), um pouco menos cruel. A realidade do ponto de vista de Cao Hamburger, diretor do filme brasileiro O ano em que meus pais saíram de férias, é um perfeito exemplo do quanto isso pode estar errado.
Produzido pela Gullane Filmes e lançado em 2006, o filme poderia se resumir a uma história que revela nosso país, nos anos 70, pelos olhos de um menino – Mauro (Michel Joelsas). Na verdade, aborda a esperança desse menino em reencontrar os pais, que “saíram de férias” e prometeram retornar antes da Copa do Mundo. Só que o Brasil se encontra em plena ditadura militar e os pais de Mauro são foragidos.
A princípio deixado no prédio do avô, que morre, o menino acaba aos cuidados de um vizinho, o velho Shlomo. A amizade dos dois pode parecer o ponto principal da narrativa, mas não é. Por mais que seja louvável estabelecer laços, por mais que haja alegria em conquistas esportivas, não nos deixemos enganar. O que realmente importa é o fato de que, enquanto a seleção brasileira vence seus jogos e segue rumo à conquista do título, alguém espera – por uma mentira. Enquanto torcemos, um país se perde em censuras, torturas, perseguições – e é o nosso. Mauro, que observa seu mundo com um olhar de cachorrinho sem dono, é apenas o lado bonito da repressão. Mas representa a infância perdida. Não há vitória no futebol que compense essa perda.
Esta semana, perdemos mais um pouco de nossa dignidade. Por causa de notícias como a vergonhosa reação da torcida do Coritiba à derrota contra o Fluminense, temos a impressão de que todas as lutas já ganhas pelo bem desta pequena nação não valem nada. Não merecemos as liberdades que temos, porque ainda nos deixamos levar como a massa impensante que somos. Os torcedores insatisfeitos são apenas um exemplo (certo, o pior exemplo) da selvageria a que se chega quando perdida a noção de individualidade. Porque um sujeito faz algo, todos podem fazer? Se esse algo for errado, isso não vem ao caso?
Então é digno da denominação de ser humano invadir um campo, agredir a polícia, jogar pedras, arrancar grades e arquibancadas, portas e computadores, destruir carros e quebrar estabelecimentos comerciais de quem não tem nada a ver com a história? Ou apedrejar a casa do técnico do time adversário? Não apenas selvageria, mas covardia. Por causa de fanatismo, pura falta de opinião própria.
Numa escala infinitamente mais absurda, porém menos violenta, outro episódio recente chama a atenção para esse tipo de atitude. Em uma universidade de São Paulo, uma garota foi atacada e praticamente linchada por usar um vestido curto. E achamos que a ditadura terminou? Que não existe mais censura? Ou regredimos a um mundo em que todos se julgam no direito de jogar pedras nos pecadores? Interessante que, para lutar por nossos direitos políticos, ninguém se atreve a mover um dedo.
As causas de hoje são vazias de sentido, por isso tão perigosas. Quando um bando de pessoas se junta para agir como uma coisa só, elas se transformam em meros marionetes. Objetos sem propósito. Jogamos por terra séculos de avanços humanos e voltamos à selva. A ponto de que comparar esse tipo de comportamento ao dos animais seria um insulto a eles, porque os animais não se anulam conscientemente, nem atacam sem motivo. Agora, não temos o direito de nos autodesignarmos “sapiens” se não somos capazes de agir como tais.

*Thanks, Thiago, por iniciar essa conversa.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

As mesmas guerras

Já que o assunto tem circulado em torno das decisões políticas internacionais – mas que eventualmente afetam nossas pobres vidinhas aqui no hemisfério sul – a notícia desta semana acabou vindo, outra vez, de Barack Obama. Há poucos dias o presidente dos Estados Unidos anunciou sua nova estratégia com relação ao Afeganistão, que inclui o envio de aproximadamente 30 mil tropas adicionais ao país.
Os motivos são as reservas de petróleo do Oriente Médio. Prova apenas de que os norte-americanos não são capazes de permanecer mais do que alguns anos sem arrumar briga com os povos árabes. Ainda no início desta década, George W. Bush (o filho) realizou uma verdadeira cruzada para derrubar Saddam Hussein do poder no Iraque e procurar pelas famosas armas de destruição em massa – que, aliás, nunca foram encontradas. Mas o conflito é bem mais antigo.
Há vinte anos atrás, no governo de outro Bush (o pai), milhares de jovens, entre eles os “marines” (fuzileiros navais), foram enviados à Arábia Saudita e arredores do Iraque para a chamada Operação Tempestade no Deserto. O objetivo oficial era defender o Kuwait invadido por Saddam. O único interesse daquela que ficou conhecida como a Guerra do Golfo, naturalmente, era proteger os preciosos campos de petróleo.
A guerra, que teve início em 1990, é o tema de um filme que retrata o ponto de vista de um desses “marines”. Soldado Anônimo / Jarhead, dirigido pelo britânico Sam Mendes e lançado em 2005, é uma produção da Universal Pictures inspirada na história real do soldado Anthony Swofford (interpretado por Jake Gyllenhaal).
Swoff é um dos chamados “jarheads” (cabeças de vaso). Ele chega ao deserto com ordens de se manter alerta e preparado para um possível ataque ao inimigo. Só que, na prática, sua rotina se resume a andar na areia, beber água e atirar em alvos imaginários. Os meses vão passando, mais tropas são enviadas à região, e a posição defensiva dos “marines” começa a se tornar enlouquecedora. A disciplina se transforma em tédio, o tempo livre em vadiagem e a falta do que fazer em frustração.
Os ideais de se tornarem heróis, causas de orgulho a seu país, espalham-se ao vento como a areia que invade até os sonhos dos soldados. Ideais esses que nunca foram muito profundos mesmo, por isso a facilidade em abandoná-los. A geração da Guerra do Golfo tem como herança o fiasco da Guerra do Vietnã. Os jovens de hoje em dia continuam morrendo por guerras nas quais nem sequer acreditam, simplesmente para satisfazer aos interesses de quem está no poder. “Quem você acha que deu a Saddam suas malditas armas?”, um deles pergunta. Foram os próprios norte-americanos, que ainda não se deram conta de que o legado dos “jarheads“, os cabeças vazias, continuará reinando enquanto esse tipo de questionamento for ignorado.
De quem é o tempo desperdiçado nas guerras? Não é dos políticos, mas dos soldados, que esperam para usar seus brinquedinhos (os rifles) como se estivessem dentro de um videogame. Mas quem vence as batalhas? Definitivamente, não são os soldados. Quando se trata do que realmente importa, eles são meros efeitos colaterais.
Vivemos em um mundo que desiste muito facilmente, que aceita sem discutir. Um mundo de fantoches descartáveis, que se autodestroem por motivo nenhum. As conquistas da humanidade já não fazem diferença, porque não são nossas. Então lutamos sem paixão, de mentirinha, porque não aprendemos. Não acreditamos mais em grandes causas. Mas será que sempre foi assim? Em Soldado Anônimo, Swoff decreta: “Toda guerra é diferente, toda guerra é a mesma”.