sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Entre mortos e feridos, perdem-se todos*

A realidade pelo ponto de vista de uma criança tende a parecer, para nós (supostamente adultos), um pouco menos cruel. A realidade do ponto de vista de Cao Hamburger, diretor do filme brasileiro O ano em que meus pais saíram de férias, é um perfeito exemplo do quanto isso pode estar errado.
Produzido pela Gullane Filmes e lançado em 2006, o filme poderia se resumir a uma história que revela nosso país, nos anos 70, pelos olhos de um menino – Mauro (Michel Joelsas). Na verdade, aborda a esperança desse menino em reencontrar os pais, que “saíram de férias” e prometeram retornar antes da Copa do Mundo. Só que o Brasil se encontra em plena ditadura militar e os pais de Mauro são foragidos.
A princípio deixado no prédio do avô, que morre, o menino acaba aos cuidados de um vizinho, o velho Shlomo. A amizade dos dois pode parecer o ponto principal da narrativa, mas não é. Por mais que seja louvável estabelecer laços, por mais que haja alegria em conquistas esportivas, não nos deixemos enganar. O que realmente importa é o fato de que, enquanto a seleção brasileira vence seus jogos e segue rumo à conquista do título, alguém espera – por uma mentira. Enquanto torcemos, um país se perde em censuras, torturas, perseguições – e é o nosso. Mauro, que observa seu mundo com um olhar de cachorrinho sem dono, é apenas o lado bonito da repressão. Mas representa a infância perdida. Não há vitória no futebol que compense essa perda.
Esta semana, perdemos mais um pouco de nossa dignidade. Por causa de notícias como a vergonhosa reação da torcida do Coritiba à derrota contra o Fluminense, temos a impressão de que todas as lutas já ganhas pelo bem desta pequena nação não valem nada. Não merecemos as liberdades que temos, porque ainda nos deixamos levar como a massa impensante que somos. Os torcedores insatisfeitos são apenas um exemplo (certo, o pior exemplo) da selvageria a que se chega quando perdida a noção de individualidade. Porque um sujeito faz algo, todos podem fazer? Se esse algo for errado, isso não vem ao caso?
Então é digno da denominação de ser humano invadir um campo, agredir a polícia, jogar pedras, arrancar grades e arquibancadas, portas e computadores, destruir carros e quebrar estabelecimentos comerciais de quem não tem nada a ver com a história? Ou apedrejar a casa do técnico do time adversário? Não apenas selvageria, mas covardia. Por causa de fanatismo, pura falta de opinião própria.
Numa escala infinitamente mais absurda, porém menos violenta, outro episódio recente chama a atenção para esse tipo de atitude. Em uma universidade de São Paulo, uma garota foi atacada e praticamente linchada por usar um vestido curto. E achamos que a ditadura terminou? Que não existe mais censura? Ou regredimos a um mundo em que todos se julgam no direito de jogar pedras nos pecadores? Interessante que, para lutar por nossos direitos políticos, ninguém se atreve a mover um dedo.
As causas de hoje são vazias de sentido, por isso tão perigosas. Quando um bando de pessoas se junta para agir como uma coisa só, elas se transformam em meros marionetes. Objetos sem propósito. Jogamos por terra séculos de avanços humanos e voltamos à selva. A ponto de que comparar esse tipo de comportamento ao dos animais seria um insulto a eles, porque os animais não se anulam conscientemente, nem atacam sem motivo. Agora, não temos o direito de nos autodesignarmos “sapiens” se não somos capazes de agir como tais.

*Thanks, Thiago, por iniciar essa conversa.

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